Não quero ser maçudo, enfastiar todos os que me lêem, com um descrição ao pormenor do que senti na minha caminhada, contudo queria deixar alguns pontos de reflexão com todos os que nunca fizeram ou não esta peregrinação.
Em 6 de Outubro de 2009, saí de casa em Lordelo do Ouro pelas 6,30 h d manha em direcção a Fátima.
Esperavam-me 220 km de caminho, e estimo ter dado cerca de 315000 passos para lá chegar.
Caminhei só, num solidão total, só o meu alento, a minha vontade me levava a caminhar.
Resisti a dores, a choros, falei sozinho, rezei, senti o que é resistir por conta própria, mas nunca admitir que poderia desistir.
Massajei pés, pernas, anca, mais pés e sei lá que mais…, usei ligaduras para almofadar os pés, cremes, e anti-bolhas, caminhei ao pé coxinho, gemi, suei, mas consegui chegar, venci a dor, a resistência ao caminho, fui persistente, fui perseverante.
A minha caminhada, foi uma vitória da perseverança, da vontade de chegar, do querer, do cultivo da minha força.
Lembro muitas vezes, que no meio ao sofrimento, pedia a Deus que me permitisse chegar, me aliviasse a dor, me fizesse a cruz suave, e lhe pedia com firmeza que não permitisse que eu cedesse, que me ajudasse a chegar a Fátima.
As primeiras horas foram sempre dolorosas, porque até que o corpo aquecesse, as dores eram grandes nos pés, tal como na parte final das tiradas.
Reflecti, vivi os kilometros, olhei a vida, senti a presença divina em mim. E aprendi algo que só a peregrinação nos dá... A PERSEVARANÇA, a confiança em nós, e CONTEMPLAÇÃO, a cada kilometro, senti a presença de Deus, que a cada pedido meu me aligeirou as dores.
No final, a sensação de bem estar, de que fui capaz, e que ter esperança, fé é a chave para vencer as montanhas que a vida nos coloca pela frente como desafio da nossa tenacidade, e força, crença em nós mesmos.
Deus é grande, e tudo o que desejamos, se o pedir-mos Deus no-lo concede!!!!.
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Dia Primeiro – 6/Out 6,30 h da manhã
Porto ( Lordelo do Ouro) – S. João da Madeira (+/- 42 km)
De mochila às costas, com cerca de 6-7 kg de peso, arranco de casa, com ansiedade, com aquela sensação de que “serei capaz??? “
Não imaginei nunca o que são 220 km a pé, nem o que seriam em esforço e sacrifício e vontade de lá chegar.
Não levava a mínima ideia de que ritmo seria necessário para vencer esta etapa, pois eu, conhecido como sedentário crónico, carregava o temor de não ser capaz, de não vencer a distância em tempo útil.
De roupa ligeira, ténis adaptados, equipado com alguns produtos de saúde para estas circunstâncias, lá caminhei, e penso que o fiz com ligeireza assinalável. Era o meu primeiro dia, e o medo fez com que tivesse pressa de chegar.
Não fui cuidadoso, não ingeri líquidos que bastasse, nem a alimentação foi correcta.
De Lordelo a Santo Ovidio (saída do Porto) são 11 km, e demorei 1,30 h para percorrer essa distancia.
Já fora da cidade, rezei o Terço do Rosário, enquanto caminhava, e fiz minhas preces, meus pedidos de auxilio, de força e esperança, resignação para o caminho.
Passada larga, ritmada, fui vencendo os km’s, sempre com paciência, nunca desesperando a subida que tinha pela frente, bem como a recta interminável que mais parecia nunca acabar.
Caminhava sempre contra-mão do trânsito, e não levava colete, nada que me sinalizasse, por opção consciente minha.
As 12,30 h estava a cerca de 20 km do Porto, mas ainda faltavam mais 20 km.
Caminhei com força, e cheguei a S. João da Madeira pelas 16,30 h.
Em S. João da Madeira, apanhei a primeira chuvada, intensa, bem carregada, fazia fumo no chão de tamanha violência, encharquei, mas não parei, aproveitei para beber alguma agua directa da chuva.
As dores nos pés, nas canelas das pernas, e na anca, eram enormes, admiti desistir, chamar os para-médicos e pedir auxilio.
O último kilometro foi terrível, caminhei ao pé-coxinho até ao ponto de dormida.
Diria que foi o kilometro mais difícil do dia.
O quarto onde fiquei era no segundo andar, e posso dizer-vos que subi degrau a degrau agarrado as paredes, sobre os calcanhares, porque os pés não podiam mais com meu peso.
Caminhei 10 horas.
Dia Segundo – 7/Out
Por razões de saúde e bem estar, optei por ficar um dia em S. João da Madeira.
O tempo está mau, chove muito, e preciso descansar da caminhada do dia anterior.
Me cuidei, tratei dos pés, das pernas e da anca. Foi uma decisão feliz, que constatei mais tarde.
Dia Terceiro – 8/Out 6,30 h da manhã
S. João da Madeira - Águeda (+/- 44 km)
Recomposto, com os pés em relativo bom estado, iniciei a caminhada para Águeda.
Chovia muito, mas fui. Coloquei minha capa protectora contra chuva, num esforço ingénuo de me resguardar. Puro engano!!!!.
Fiquei pior que no primeiro dia, encharcado até aos ossos, molhadinho com a roupa bem colada no meu corpo.
Rezei o terço, sequei a roupa no corpo, não desanimei, antes pelo contrário, eu tinha mais força para caminhar. Saltei rios de àgua, senti-me uma sopa.
Na localidade de Branca, numa pasteleraria, mudei a t-shirt encharcada, por uma seca que comigo trazia, e por simpatia o dono da pastelaria ofereceu-se para secar nos formos dos bolos t-shirt agora encharcada. Acedi, dava jeito!!!.
Na volta, t-shirt tresandava a cheiro de bolos cozidos, e aqui e ali a t-shirt tinha marcas de açúcar carbonizado agarrado, o que lhe emprestava o odor empastado e enjoativo.
Mesmo assim agradeci, gentileza, é mesmo assim.
Subidas íngremes, longas, sempre preenchidas pelo roncar dos camiões que comigo cruzavam. Diria, que para além do esforço de caminhar, tinha um sacrifício extra, que psicologicamente nos derrota…. o ruído incessante dos motores, zurzindo nos nossos ouvidos…. De facto uma tortura real, enfadonha.
As estradas longas, intermináveis, as subidas, descidas, os pés sobreaquecidos, os joelhos, o respirar difícil, sede, tudo esta contido na caminhada.
Os pés doem um pouco, mas na parte final, será mais duro, eu sei.
Atravessei estradas, passei áreas de prostituição, observei animais abandonados presos a um corrente de meio metro, “guardando” nada, mesmo nada…. Só sofrendo. Afinal, eu sou bem mais feliz….caminho por opção, sofro por consciência, ao contrário daqueles pobres seres, que mesmo quadrúpedes, não terão escolhido viver acorrentados, esfomeados e sedentos.
Os últimos 9 km até Águeda, foram difíceis, terríveis, arrastei-me por nove kilometros, coxeando, gemendo as dores dos pés, das pernas, transpirando abundantemente.
Atravessei uma ponte terrível, com mais de 100 metros de altura sobre o rio Águeda, com uma única faixa em cada sentido.
Senti medo, senti de facto medo, mas não desisti apesar da fobia, o barulho dos motores
da deslocação de ar sobre mim, provocado pelo movimento das viaturas.
Senti tonturas, falta de força, secura, urgentemente precisava de açúcar, vontade de chorar!.
A dois kilometros do destino de descanso, entrei numa cafetaria e bebi duas garrafas de água com muito açúcar, ganhei forças, e continuei, era noite já.
Cheguei a casa da D. Filomena, gente boa, amiga, hospitaleira, que me receberam em Águeda, eram 20,15 da noite.
Exausto, cansadíssimo, tomei um banho retemperador, jantei, e conversei um pouco.
Fui para a cama eram 23,30 h, descansei muito bem.
Caminhei hoje 14,30 horas.
Dia Quarto – 9/Out 6,30 h da manhã
Águeda – Coimbra (+/- 46 km)
O dia esta com bom aspecto, não chove, está fresco, e caminho bem, apesar de umas dores nos pés, estão como que espalmados.
Este pedaço pareceu-me na sua parte inicial mais calmo, mais plano, e assim caminhei bem, com passada rápida, sempre constante.
Rezei o terço, fiz minhas preces, meus pedidos ao Divino Deus.
Ao fim de 4 horas de caminho relaciono-me pela primeira vez com outros peregrinos, talvez 15 pessoas, que caminhavam estendidas por uma boa centena de metros.
Uns mais rápidos outros menos, vinham de Baião, na zona de Amarante.
Caminhei talvez 5 kilometros ao lado de uma senhora, que não parava de falar sobre tudo. Senti cansaço, pois enquanto se caminha se falarmos, sinto-me mais cansado.
Fiz uma opção, e sob pretexto de uma bebida, me afastei, e optei por caminhar sozinho, sinto-me melhor, pois fico entregue a mim mesmo.
Almocei na Mealhada, descansei 1 hora.
Encontrei uma descida com mais ou menos 2 km, para de seguida encontrar uma subida enorme com 2 a 3 kilometros. Custou-me muito, pois subi lentamente, muito lentamente, mas subi.
Na estrada entre S.Clara e Coimbra, por duas vezes senti o medo de ser sugado pelo movimento de dois camiões, que sem sensibilidade não fizeram o mínimo para me evitar, forçando-me encostar-me mais às bermas.
Cheguei a Coimbra, eram 20 horas, cansadíssimo, muito exausto.
Chorei, senti o abandono, a solidão, as dores, e a vontade forte de desistir, não estava capaz de caminhar.
Descansei no banco do jardim cerca de uma hora, e depois procurei onde descansar.
Caminhei 14 horas.
Dia Quinto – 10/Out 7,30 h da manhã
Coimbra – Pombal (+/- 43 km)
Os pés doem, mesmo muito, mas comecei o caminho.
A saída de Coimbra tem logo como “aperitivo” uma subida íngreme de mais ou menos 4 kilometros.
Para iniciar não é mau, aquece os músculos, e fortalece o querer, a vontade de vencer.
Custou, subi devagar, mesmo devagar, pacientemente subi.
Rezei o terço, fiz minhas orações e preces.
Sol aqueceu, a chuva foi-se embora, veio o suor.
Caminhei forte, e este percurso revelou-se simpático, bem fácil de fazer tendo em conta os anteriores.
Poucas subidas, e de relevo agradável, mas com rectas enormes, daquelas que nos fazem sentir que nunca chegaremos ao seu fim.
Aprendi um pormenor nas etapas anteriores que usei nesta etapa…. Procurar nunca olhar em frente, mas sempre para os dois, três metros à nossa frente. Assim me defendia psicologicamente, assim ganhava resistência para a caminhada.
O sol ia alto, a transpiração era muita, bebia muita água.
Eram 11 da manhã, quando na estrada fui interceptado por uma equipa de televisão, a RTP.
Fizeram-me um pequeno questionário sobre o facto de não usar o colete reflector, nem pulseira sinalizadora.
Respondi com cortesia, bom senso, e fui presenteado com um colete, um boné, e uma pulseira reflectora.
Dei nota deste facto aos meus familiares, e pude ver que fui objecto de reportagem no dia seguinte, nos noticiários nacionais das 9; das 10, das 13 e 20 horas do dia 11/Out.
Foi um alento, senti-me bem, e por largos kilometros senti o entusiasmo de uma criança acabada de ser presenteada.
Após rectas enfadonhas de Pombal, após ter saciado a sede várias vezes, cheguei a Pombal, seriam 19,30 da tarde, diria já noite.
Instalei-me em residencial de boa qualidade, tomei banho de imersão, (já não tomava banho de imersão faz anos), e recompus-me bem.
Dormi bem, relaxei após ter jantado.
Caminhei 13 horas.
Dia Sexto – 11/Out 7,oo h da manhã
Pombal - Fátima ( +/- 45 km )
Ás sete da manhã, procurei saída da cidade em direcção à Nacional nº 1.
Encontrei duas peregrinas de nome Conceição e Isabel.
Vinham desde Valença do Minho, a norte da cidade do Porto, qualquer coisa como 450 kilometros de distancia!!!!!.
Isabel, menina calada, sofredora, martirizada pelos pés, caminha a saltinhos, passos curtos, muito corada, e muito concentrada no seu caminho.
Conceição, essa, uma maratonista das peregrinações, vem pelo que me disse, duas vezes a Fátima por ano, isto enquanto as pernas e a saúde assim o permitirem, segundo o que prometeu ela própria à Virgem Maria, pelas graças recebidas.
Boas companhias, crentes, devotas de Nossa Senhora de Fátima.
Se não fossem elas eu teria tido muitas dificuldades neste ultimo troço.
O caminho é específico, pois se faz pelo interior de sítios, lugarejos, longe da estrada nacional que até aqui era a via por excelência de caminhada.
Este trajecto incluía uma subida ao alto de Santa Catarina, uma serra com 800 metros de altura, feitos sob sol escaldante, e com via-sacra incorporada.
Este trajecto foi difícil, mas o alento de ser o último, deu-me energia para continuar em força.
Neste trajecto, posso dizer que rezei desde as 7 da manhã até as 19, 30 da tarde, hora a que chegamos a Fátima.
Os pés ferviam, as pernas doem, o suor me banhava, mas suportei.
Conceição, boa conversadora, boa companhia, se encarregava de promover a espiritualidade necessária para a chegada a Fátima.
Estou convencido, que não foi acaso esta companhia para mim, já que caminhei todo o tempo sozinho, e sinto que me foi dado o privilégio desta companhia.
Rezei o terço várias vezes, fizemos a via-sacra, fizemos cânticos, louvores e meditação. Foi lindo, adorei esta parte.
Esta caminhada foi feita também debaixo de um calor intenso, só amenizada pela espiritualidade que Conceição injectou no trajecto.
Cheguei a Fátima, com meus pés torturados, mas feliz.
Encontrar dormida foi duro, mas encontrei.
Nessa noite fui à Basílica, e assisti à procissão das velas, rezei o terço do rosário.
Estou feliz, consegui, apesar de nem de pé poder estar, mas consegui.
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